sábado, 3 de março de 2012

Será o imortal Sarney mais um a tentar desdizer o mortal Heráclito?

Será o imortal Sarney mais um a tentar desdizer o mortal Heráclito?

 “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti” - Heráclito de Éfeso

Olhando para nosso querido Brasil, não posso deixar de matutar sobre Heráclito; se o emérito filósofo poderia estar se esquecendo, assumindo que já se sabia naquele tempo, que há exceções que justificam regras.

Ocorreu-me a figura simbólica de que pode haver algo estrutural, estático, “sempre o mesmo” pelo que instituições, sociedades, grupos ou indivíduos poderiam "passar". Esta idéia não é minha. Autores admiráveis me mostraram que podemos estar confundindo um gesto, ou mesmo o sexo, com algo que é “nosso” ou de “alguém próximo”. Quando, na verdade, o gesto e o sexo é que poderiam ser as estruturas fixas. E nós seríamos os “alguens”, que estariam passando por estas imutáveis perenidades. Esta é a “liga” que pretendi implícita nos parágrafos do texto abaixo.

Só adaptei a idéia à mania brasileira de assassinar a História.

Tudo começa na década de 90, aliás, a do primeiro impeachment brasileiro – não lembro exatamente o ano – quando Milan Kundera me enlevou com Imortalidade. Pela capacidade de juntar ironia e astúcia na busca, infindável, de respostas sobre a natureza humana e o significado da vida. Há dois trechos memoráveis no livro. O mais relevante para minha divagação aqui são exatamente as linhas que iniciam o livro. Imortalidade excitou-me com aquela sensação de quando o time preferido faz um gol, com menos de um minuto de jogo, a partir de uma linda troca de passes, concluída com alguma jogada sensacional. O livro é uma vitória por goleada, numa final de campeonato, contra o maior rival.

O trecho apaixonante descreve uma moça na “melhor idade”, entre sessenta e sessenta e cinco, nas palavras de Kundera, se despedindo de seu professor de natação. Graciosamente passando por ele ao sair da piscina, virando a cabeça, rindo e sensualmente movendo a mão no gesto de “tchau”. Como se “jogasse, brincando, uma bola brilhante e colorida a seu amante”. Num “gesto de menina de vinte anos”. A partir desta observação, o personagem-narrador do livro conclui que há uma parte de todo ser humano que vive fora do tempo. A essência do gesto prevaleceu, como se, na verdade, fosse o gesto que existisse, sendo a senhora-moça apenas o meio pelo qual tal gesto eterno se mantinha vivo, acontecia intermitentemente, sempre da mesma forma.

Pouco tempo depois, em um dos ensaios no livro 131 Posições Sexuais, de Lu Lacerda, eu aprendi, em forma literária similar, sobre outro fenômeno humano. Justamente o ensaio em que a complexidade, vastidão e vagueza da sexualidade é a tese defendida, por coincidência, pelo meu querido orientador, amigo e “cupido-culpado” por meu casamento, o antropólogo Everardo Rocha.

Naquele belo ensaio, Everardo descreve uma tribo que baseia o sexo na transitoriedade; “explicavam que o sexo passava pelas pessoas em meio ao seu próprio percurso. Quando ele acontecia, era sempre como um descuido na passagem ou um estacionamento temporário ou encontro incerto”.

Em respeito à forma, importante como o conteúdo, faz-se necessária uma analogia com o esporte bretão. O ensaio de Everardo é como um belo jogo amistoso, sem retrancas nem entradas desleais, com jogadas fantásticas, muitos gols e, no fim, um empate justo; pois quem disse que é preciso haver vitória para haver beleza?

Nos dois momentos sublimes de minha procura literária, uma idéia inteligente: a de que uma instituição social, o gesto de despedida e o sexo, é que é a estrutura fixa pela qual transitam ou "são transitadas" pessoas e sociedades. Sendo inacessíveis e imutáveis.


Lindas imagens.

Não pude deixar de me aproveitar deste criativo estilo literário para lidar com o recente fato de que a cassação de Fernando Collor de Mello foi “cassada” (se é pleonasmo, é mais que merecido), por José Sarney, dos anais do Senado brasileiro. Senado com “S” maiúsculo e brasileiro com “b” minúsculo, pois de fato assim o é, na língua culta como na realidade brasileira.

Lembrei de aulas em que supostamente eu aprendia, apesar das ausências propositais de discussões mais detalhadas sobre Palmares e outros milhares de quilombos, sobre a Cabanagem, sobre a Farroupilha. De minha anterior ignorância sobre nossa brasileira absorção do estado do Acre. Sobre a verdadeira “guerra do Paraguai”. Tentei vislumbrar, sem julgamento de mérito ou entendimento dos motivos, Rui Barbosa queimando os registros, documentos e arquivos sobre a escravidão; tentei sentir o cheiro de pedra quente caindo na implosão do presídio de Ilha Grande, reduzindo a pó o concreto da prova literalmente concreta de mais uma guerra civil que preferimos negar, país pacífico e povo harmonioso que somos. O ponto não é analisar e julgar tais atos. É simplesmente entender, como já sugeriram outros, a facilidade com que a cultura brasileira aceita a distorção da História. É como se a estrutura fixa na sócio-política brasileira fosse uma personalidade psicopata. O caráter assassino que tenta embalsamar, enterrar e cremar informações importantes sobre fenômenos relevantes, porém já idos, numa constante contratação barata de atiradores, matadores profissionais (ou, quem sabe, na contratação profissional de atiradores, matadores baratos...) para espreitarem e reduzirem nossa História com “H” maiúsculo a uma “istória” escrita errado. Como se por esta estrutura fixa de pessoalidades e estamentos, passassem consecutivas gerações de políticos, de cidadãos, de indivíduos e pessoas, de amigos transitórios e inimigos transitórios de reis transitórios, numa lamentável ode à nossa perene desigualdade social e incapacidade de dialogar sobre ela de forma madura e compreensiva.

A analogia futebolística? Aqueles jogos que são pura violência, que terminam interrompidos pelo árbitro após expulsar tantos jogadores de ambos os lados que o limite mínimo de atletas em campo é atingido. Ou um jogo em que meu time perde. Como a derrota de uma das melhores seleções brasileiras de todos os tempos, na Copa de 82, para a Itália. A Itália que nem era de Silvio Berlusconi.

Horrorosa imagem. Um rio de água parada, poluída.

Em São Paulo, num quarto de hotel, durante meu sabático e voluntariado, maio de 2011

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